O Peixe Sagrado
Semana santa, na quinta-feira os meninos prontos para o lava-pés, ávidos, na verdade, pela entrada gratuita no cinema do padre. Depois, o dia da morte, da crucificação e morte do Senhor, todos no mais completo silêncio dentro de casa. Proibido assoviar e cantar. Músicas, somente as clássicas, orquestradas, em todas as emissoras de rádio. Quando não os acordes fúnebres na sonoridade do autofalante. Televisão não havia. A avó, que se acordava muito cedo, vestia preto fechado, como se tivesse perdido um filho; um filho ou o marido. Mais tarde, quando o sol ia se recolhendo e a noite chegando, hora de visitar o morto célebre, os mais importante de todos os defuntos da existência terrena. A fila indiana para o beijo derradeiro. Um beijo anti-higiênico na imagem deitada e recoberta por um pano de linho.
Lá atrás o banho da lavadeira, Miranete de prenome, os ruídos da água caindo; dos pingos lavando o corpo barroco da mulher, que de propósito se ensaboava de porta aberta, escancarada diante de todos. De todos que não podiam ver o quadro, porque era preciso não pecar naquele dia. Ela nuazinha embaixo do chuveiro, a água molhando o corpo de todos os desejos, as coxas enormes dando sequência a um quadril de proporções avantajadas. Ela sabia das proibições todas em casa. No gabinete do pai, o Cristo numa estampa muito grande, tinha o detalhe de passar os olhos em quem se aproximasse Dele. O olhar de reprovação diante do pecado por pensamento. A vontade de complementar, com palavras e obras, a falta do momento. Tudo explicitado aos ouvidos do cura, que para espanto do interlocutor indagava: “Outra vez?”. “Não há solução para você!”.
De nada serviu pedir para ir a um grito de Carnaval, no Sábado de Aleluia. A argumentação fenecia diante da justificativa do pai. O Senhor estava morto, devidamente posto no sepulcro sagrado. Foi debalde dizer que a ressurreição tinha se dado. Só às 3 horas da tarde do domingo, a grande pedra que oblitera o lugar da sepultura se abre, num trovão que atinge o mundo inteiro, explicava ele. Ai sim será possível fazer as coisas mundanas, participar de festas e convescotes. Mesmo assim, com a cumplicidade da mãe, o frevo e o samba tomaram conta do menino, de cuja consciência nasciam brados intimistas de reprovação. Açoites do superego frente às tentações da matéria. E na hora das danças não houve jeito da quase criança tirar aquela dama de ocasião, que fitava o adolescente com um olhar pidão de quem quer e deseja o fogo da carne.
Às dez da manhã, sob chuva intensa, parou na frente da casa o amigo da rua, Bilizado por apelido, vinha, somente, para saber se era pecado beber em dia assim, de tanto recato e tanta retidão. Indagava isso porque o protagonista dessas palavras era católico praticante, de Missa a cada domingo, confissão e comunhão, segundo os preceitos. À resposta de que não sabia, realmente, se era ou se não era uma falta grave o ato de beber, teve uma afirmativa na ponta da língua: “Vinho é permitido.”. E foi ao boteco da esquina, encher a cara com um produto barato, ácido e com uma saburra de meter medo. Embriagou-se até a medula e saiu falando de toda gente na rua. Da mulher que varria a frente da casa e que se engraçou do vizinho, de Zé Colmeia e suas artimanhas, do motorista de caminhão da fábrica que se corroia em remorsos pela morte de um menino.
E lá se foram os anos, somados em décadas, sem que o protagonista misterioso dessas linhas encontrasse as sete igrejas nas quais venerar o Cristo morto, aguardando a sepultura. Sem pecados mais nas costas, seguiu em frente, no repetir da liturgia e do ritual, reuniu a família, que não chegou por inteira, para comer o peixe – um linguado espanhol – da quinta-feira santa. Eis o peixe sagrado!
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GERALDO PEREIRA
Recife, Pernambuco, Brazil
Formado em Medicina
Escritor e Cronista
Filho do escritor cearamirinense:
Nilo Pereira
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