NOTÍCIAS DA LUSOFONIA

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Literatura Indígena e o Tênue Fio entre Escrita e Oralidade.


Por: Daniel Munduruku

Artigo publicado na RevistaPessoa

A escrita é uma conquista recente para a maioria dos 250 povos indígenas que habitam nosso país desde tempos imemoriais. Detentores que são de um conhecimento ancestral apreendido pelos sons das palavras dos avós, estes povos sempre priorizaram a fala, a palavra, a oralidade, como instrumento de transmissão da tradição, obrigando as novas gerações a exercitarem a memória, guardiã das histórias vividas e criadas.

A memória é, pois, ao mesmo tempo passado e presente que se encontram para atualizar os repertórios e descobrir novos sentidos que se perpetuarão em novos rituais que abrigarão elementos novos num circular movimento repetido à exaustão ao longo de sua história.

Assim estes povos traziam consigo a memória ancestral. Essa harmônica tranquilidade foi, no entanto, alcançada pelo braço forte dos invasores: caçadores de riquezas e de almas. Passaram por cima da memória e foram escrevendo no corpo dos vencidos uma história de dor e sofrimento. Muitos dos atingidos pela gana destruidora tiveram que ocultar-se sob outras identidades para serem confundidos com os desvalidos da sorte e, assim, poderem sobreviver. Esses se tornaram sem-terras, sem-teto, sem-história, sem-humanidade. Esses tiveram que aceitar a dura realidade dos sem-memória, gente das cidades que precisa guardar nos livros seu medo do esquecimento.

Por outro lado – e graças ao sacrifício dos primeiros – outro grupo pode manter sua memória tradicional e continuar sua vida com mais segurança e garantia. Esses povos foram contatados um pouco mais tarde, quando os invasores chegaram à Amazônia e tentaram conquistá-la como já haviam feito em outras regiões. Tiveram menos sorte, mas também ali fizeram relativo estrago nas culturas locais e as tornaram dependentes dos vícios trazidos de outras terras. Foram enfraquecidos pela bebida, entorpecidos pela divindade cristã e envergonhados em sua dignidade e humanidade.

Esses povos – uns e outros – estão vivos. Suas memórias ancestrais ainda estão fortes, mas ainda têm de enfrentar uma realidade mais dura que de seus antepassados. Uma realidade que precisa ser entendida e enfrentada. Isso não se faz mais com um enfrentamento bélico, mas através do domínio da tecnologia que a cidade possui. Ela é tão fundamental para a sobrevivência física quanto para a manutenção da memória ancestral.

Claro está que se estes povos fizeram apenas a “tradução” da sociedade ocidental para seu repertório mítico, correrão o risco de ceder “ao canto da sereia” e abandonar a vida que tão gloriosamente lutaram para manter. É preciso interpretar. É preciso conhecer. É preciso se tornar conhecido. É preciso escrever – mesmo com tintas do sangue – a história que foi tantas vezes negada.

A escrita é uma técnica. É preciso dominar essa técnica com perfeição para poder utilizá-la a favor da gente indígena. Técnica não é negação do que se é. Ao contrário, é afirmação de competência. É demonstração de capacidade de transformar a memória em identidade, pois ela reafirma o Ser na medida em que precisa adentrar no universo mítico para dar-se a conhecer ao outro.

O papel da literatura indígena é, portanto, ser portadora da boa notícia do (re)encontro. Ela não destrói a memória na medida em que a reforça e acrescenta ao repertório tradicional outros acontecimentos e fatos que atualizam o pensar ancestral.

Há um fio muito tênue entre oralidade e escrita, disso não se duvida. Alguns querem transformar este fio numa ruptura. Prefiro pensar numa complementação. Não se pode achar que a memória não se atualiza. É preciso notar que ela – a memória – está buscando dominar novas tecnologias para se manter viva. A escrita é uma dessas técnicas, mas há também o vídeo, o museu, os festivais, as apresentações culturais, a internet com suas variantes, o rádio e a TV. Ninguém duvida que cada uma delas é importante, mas poucos são capazes de perceber que é também uma forma contemporânea de a cultura ancestral se mostrar viva e fundamental para os dias atuais.

Pensar a literatura indígena é pensar no movimento que a memória faz para apreender as possibilidades de mover-se num tempo que a nega e que nega os povos que a afirmam. A escrita indígena é a afirmação da oralidade. Por isso, atrevo-me a dizer como a poeta indígena Potiguara Graça Graúna:

Ao escrever,
dou conta da minha ancestralidade; 
do caminho de volta,
do meu lugar no mundo.


Daniel Munduruku. 

Escritor indígena com 45 livros publicados. É graduado em Filosofia, tem licenciatura em História e Psicologia, é Doutor em Educação pela USP e pós-doutor em Literatura pela Universidade Federal de São Carlos. É Diretor presidente do Instituto UKA – Casa dos Saberes Ancestrais. Recebeu diversos prêmios no Brasil e Exterior entre eles o Prêmio Jabuti, Prêmio da Academia Brasileira de Letras, o Prêmio Érico Vanucci Mendes (outorgado pelo CNPq); Prêmio Tolerância (outorgado pela UNESCO). Muitos de seus livros receberam o selo Altamente Recomendável outorgado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ).

O cante do Alentejo já é Património Cultural Mundial

Ensaio do Grupo Coral e Etnográfico "Os Camponeses de Pias.
Imagem: Nuno Ferreira Santos 

Na manhã do dia 27 de novembro de 2014, em Paris, a UNESCO aprovou a inscrição do "Cante Alentejano" na lista representativa do património cultural imaterial da humanidade.

Portugal foi convidado a “intervir para partilhar a sua alegria” e 21 membros do Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa, todos homens, surgiram em palco nos seus trajos rurais, chapéus pretos e cajados, e cantaram , durante breves minutos, a canção Alentejo, Alentejo. Telemóveis e tablets despontaram um pouco por toda a grande sala da UNESCO, para registar o momento.

O cante é a terceira nomeação portuguesa a ser consagrada internacionalmente pela UNESCO, depois do fado em 2011, e da dieta mediterrânica em 2013 (uma candidatura apresentada em conjunto com Espanha, Marrocos, Itália, Grécia, Chipre e Croácia).

Não houve quaisquer objecções à nomeação portuguesa, e só o Brasil – que viu a roda de capoeira integrar a mesma lista no dia anterior – pediu a palavra para felicitar brevemente a inclusão do cante. “Temos apreço pela nossa herança portuguesa e estamos tão emocionados quanto os portugueses”, disse a delegada brasileira.

Eram 11h17 em Paris (10h17 em Portugal) quando a inscrição do cante alentejano na lista do património cultural imaterial foi aprovada e formalizada – depois de nove outras candidaturas.

Confira mais detalhes AQUI!

Sobre o CANTE ALENTEJANO... 

Alentejanos com seus trajos rurais,
chapéus pretos e cajados.

Cante Alentejano é um género musical tradicional do AlentejoPortugalÉ um canto coral, em que alternam um ponto a sós e um coro, havendo um alto preenchendo as pausas e rematando as estrofesNo cante sobrevivem os modos gregos extintos tanto na música erudita como na popular europeia, as quais restringem-se aos modos maior e menor Esta face helénica do canto poderá provir tanto do canto gregoriano como da cultura árabe, se bem que certos musicólogos se apercebam no cante de aspectos bem mais primitivos, pré-cristãos e possivelmente mesmo pré-romanos.  Antigamente o cante acompanhava ambos os sexos nos trabalhos da lavoura. Público era também o cante nos momentos masculinos de ócio e libação, seja em quietude, seja em percurso nas ditas arruadas. Público ainda era o cante mais solene das ocasiões religiosas. Outro cante existia no domínio doméstico, onde era exercido principalmente por mulheres e no qual participariam também meninos.

Alentejanas em trajes típidos.
Imagem: Blogue Café Portugal
Após a Segunda Guerra Mundial, a progressiva mecanização da lavoura, a generalização da rádio e da televisão, assim como o êxodo rural massivo causaram o declínio do género. Hoje o cante sobrevive em grupos oficializados que o cultivam, mas já sem a espontaneidade de outrora, limitando-se eles a recapitular em ensaio o repertório conhecido de memória, amiúde sem qualquer registo escrito nem sonoro e já sem acção criativa. Apesar de serem estes grupos e a sua manifestação em festas, encontros e concursos os guardiões da tradição, em numerosos casos progride neles o afastamento da dita com a inclusão no repertório de peças estranhas ao cante, instrumentação e adulteração de peças tradicionais num sentido mais popular, com destaque para o desvio direito ao fado, numa tendência de avivamento do género que visa torná-lo mais garrido. Já Património da Humanidade, "o que importa é dar futuro a este Cante, para expressar as novas dinâmicas de mudança, a melhoria dos quadros de vida, a atracção e fixação de novas gentes e o sucesso crescente desta região como território turístico. E também escrever-lhe uma história, ainda em falta." (Fonte: Wikipédia)