Nos últimos dias tenho lido e ouvido muitas histórias sobre o escritor, o pai de família, o poeta, o contista, o professor, o lutador obstinado, enfim o meu amigo Bartolomeu Carreia de Melo, o meu amigo Bartola. Por minha vez, quero deixar registrado apenas a história de nossa amizade, que teve seu começo num dia de carnaval.
Corria o ano de 1962 e ao entardecer do dia 7 de março, a Av. Deodoro se enchia de alegria. Apinhada de foliões, vestidos de rei, piratas ou de jardineira. Desfilavam, também, os tradicionais pierrôs, colombinas e arlequins, além dos conhecidos papangus, cobertos com trapos coloridos. Esses personagens perambulavam pelas ruas de então, num frenético vai e vem, alegrando e divertindo os espectadores que tomavam as calçadas ao longo de toda a avenida. Grandes máscaras com motivo carnavalesco pendiam presas aos postes de ferro que iluminavam a cidade daquela época, enfeitando o corredor da folia. Os pés de ficus benjamim, iluminados com lâmpadas coloridas e cobertos por serpentinas de todas as cores, davam uma visão lúdica aquele ambiente que se preparava para mais uma noite de folia.
Foi nesse ocasião que voltei minha atenção para um dos foliões que por ali passava. Aquela figura me chamou a atenção “pelo conjunto da obra”. Alto, magro, óculos fundo de garrafa, calças faroeste e camisa bem colorida, típica da ocasião. Com passos miúdos e arrastados, acompanhava no andar, a cadência que vinha das troças e bandinhas de frevo que passavam na ocasião. Usava um chapéu de abas curtas e no canto da boca pendia um cachimbo à moda Sherlock Holmes, de onde retirava, a todo instante, grandes baforadas de fumaça que enchiam o ar com o cheiro característico do fumo Bulldog, coisa muito chique para os padrões da época. Aquela figura era o amigo Bartola, que misturado a multidão acompanhava as inúmeras “troças” que enchiam a avenida. Não sei por que, mas nunca me esqueci daquela cena. Aquele dia ficou gravado para sempre em minha memória. Certa vez tive oportunidade de lhe falar sobre esse dia e demos boas risadas. Ele, naturalmente, não se lembrou da ocasião.
Daí por diante, passei a encontrá-lo com mais freqüência. Naquela época, nossa aldeia ainda muito pequena, as pessoas tinham mais facilidade de se conhecerem. Mesmo que não se cumprimentassem, sabiam de quem se tratava. Não obstante ser ele um conhecido professor, profissão que amou durante toda sua existência, logo fizemos os primeiros contatos. Por ser cinco anos mais velho que eu, via-o com certa reserva, pois quando se é jovem, esses anos significam uma considerável distância, principalmente no trato intelectual. Com o passar dos anos, essa diferença tende e se extinguir. Daí por diante passamos a nos encontrar pelas ruas da cidade, bares, sorveterias, cinemas e outros pontos, para onde convergiam os jovens daquela época.
Após sua formatura na UFRN, mudou-se para São Paulo onde fez mestrado em química, disciplina que elegeu para sua carreira profissional, só retornando a Natal, alguns anos depois. Como um abnegado e apaixonado pelo que fazia, passou anos a fio repassando seus conhecimentos a várias gerações de estudantes em nossa cidade. É difícil encontrar um colegial daquela época que não tenha tido o privilégio de um dia ter sido aluno do professor Bartola.
Na década de 80, voltamos a nos encontrar. Dessa vez, em virtude da amizade do casal Bartola e Verônica, com minha cunhada Glicia Galvão Damasceno, que também fazia parte do departamento de Química da UFRN. Desde esse dia, cresceu e se afirmou entre nós, o mais puro sentimento de amizade fraternal. Tive oportunidade de passar momentos em agradáveis conversas, onde a tônica era o humor. Nunca conseguimos conversas por mais de meia hora sem que surgisse uma piada ou uma história pitoresca que tivesse acontecido com alguém.
Na praia da Pipa, onde nos visitou por muitas vezes, passávamos horas escutando suas piadas. Quando se tratava dessa arte, era imbatível. Tinha na ponta da língua, uma anedota para cada situação que alguém abordasse. Se não as tinha, criava na hora, pois sendo inteligente e espirituoso, nunca perdia a oportunidade de dar boas risadas.
Certa vez, me deslocava pela Rua João Pessoa e ao passar na calçada do Centro Cearense, vi que Bartola caminhava bem à minha frente. Com passos largos e braços em franco movimento como se quisesse voar, andava com a cadência de um dobrado militar. Na sua frente, nessa mesma passada, também caminhava uma jovem senhora de quadris avantajado que balançava feito um pudim, ao sabor de suas firmes e elegantes passadas. Vendo aquela cena, não resisti. Apressei o passo e perguntei: “Bartola, prá onde você está indo??” E ele com aquele sorriso maroto respondeu de chofre: “eu vou aqui no vácuo dessa jamanta, até onde, não sei!”. Dito isso foi uma risada só, tanto dele como a minha e dos passantes que ouviram o diálogo entre nós. Assim era ele, espirituoso ao extremo e sempre pronto a provocar risos com suas tiradas maravilhosas.
De outra feita, quando ele estava internado na UTI do Hospital do Coração, onde convalescia de mais uma de suas constantes crises respiratória, tivemos o seguinte diálogo. Ao me aproximar do seu leito, ele olhou pra mim e com visível dificuldade na voz perguntou: Ormuz, você pensa quando vai respirar? Eu ainda surpreso pela pergunta respondi: Não! Ninguém pensa! Então ele me disse: pois eu penso. A todo instante eu penso se vou conseguir respirar mais uma vez. Foi aí que me dei conta de sua pergunta e entendi o sofrimento pelo qual ele estava passando.
Vendo meu constrangimento, deu mais uma prova de sua grandeza e de humor apurado, virtudes que manteve até o fim de seus dias, e relatou um acontecimento hilário. Contou-me que no dia anterior, a enfermeira cumprindo sua rotina de trabalho, chegou para medir sua pressão. E manteve o seguinte diálogo. - Bom dia seu Bartolomeu!. - Bom dia, essa menina. - O senhor dormiu bem? - Assim, assim! Após os movimentos característicos do tensiômetro, a moçinha, olha pra mim com ar de preocupação, e disse: seu Bartolomeu sua pressão esta muito alta!! E ele pra não perder a oportunidade, saiu-se com essa: também essa menina! Você fica o tempo todo alisando meu braço, e ainda não quer ela suba? Talvez esse diálogo na realidade nunca tenha acontecido, mas foi a maneira gentil que encontrou de me deixar mais à vontade e tornar mais alegre aquele ambiente de sofrimento.
Recentemente quando fundamos a ACLA – Academia Cearamirinense de Letras e Artes, fui convidá-lo para participar da Instituição, pois dela faziam parte grandes amigos de sua época de adolescente em Ceará-Mirim, todos ligados a arte e a literatura. Esses amigos se propunham a iniciar um grande movimento em prol da cultura daquela cidade. Novamente ele fez uso de seu humor, dizendo: “Ormuz, eu estou muito mais para patrono”- risos.
Era imbatível, mesmo nas piores situações que enfrentou durante todos os anos que lutou contra a doença devastadora que aos poucos lhe tirava as forças, mas não conseguia lhe tirar o humor, nem a vontade de viver. Sempre esteve pronto a transformar a dor e o sofrimento em esperança e alegria. Nesses últimos anos que lutou bravamente contra sua enfermidade, nunca vi em seus olhos o menor sinal de medo ou desespero. Pelo contrário, sempre o encontrei com um semblante sereno e pronto pra dar uma gostosa risada ao menor sinal de uma boa piada.
Por natureza, sempre foi um vencedor. Amigo de todas as horas nunca se furtou a ajudar aos que lhe procuravam. Quando me iniciei na literatura, já cinqüentão, como foi o seu caso, encontrei nele a força necessária de um grande colaborador sempre disposto a me ajudar, orientando-me para melhorar, cada vez mais, aquilo que me propunha escrever.
Quase que diariamente nos falávamos por telefone e com freqüência eu lhe visitava em sua casa. Durante esse período, jamais deixou transparecer qualquer sentimento de revolta em virtude de sua precária saúde ou o mais tênue sinal de medo do que estava por vir, pois sendo católico fervoroso sabia que o amanhã pertence ao Criador.
Perdi um grande amigo, e o país perdeu um excelente contista que fez história, pois conseguiu recuperar para sempre, grafada em suas obras, como: Lugar de Estórias, e Estórias Quase Cruas, com linguagem característica do caboclo do nordeste do Brasil, principalmente da regido canavieira do século passado.
Todos sabem que sua ausência será muito sentida. Entretanto, ficam presentes as boas lembranças guardadas no lado esquerdo do peito, como diz a canção.
Pipa, madrugada de 23 de junho de 2011.
ORMUZ BARBALHO SIMONETTI (*)
(*) Escritor, membro da
ACLA-Academia Cearamirinense de Letras e Artes e
Presidente do Instituto de Genealogia do RN.
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